Plano da Ordem e da Desordem

O aspecto da malandragem, identificado em especial no personagem de Leonardo Filho, vai servir como ponto de partida para a identificação do recurso de ordem x desordem, que é perceptível ao longo de “Memórias”. A questão da malandragem, para Antonio Candido (1970) foi apenas um dos muitos aspectos que Manuel Antonio de Almeida teria percebido na sociedade como um todo e relatado na sua obra. Toda essa percepção, organizada, que vai refletir na ordem e desordem das situações.
Candido (1970), então, vai classificar os personagens da obra como pertencentes a dois campos, um positivo e um negativo: a ordem e a desordem, respectivamente. Em cada um dos campos, os indivíduos a que eles pertencem passam a narrativa tentando instigar o personagem principal, Leonardo Filho, a se decidir por uma linha comportamental – e o mesmo, como não poderia deixar de ser, passa toda a narrativa migrando de um campo para o outro, em oscilações de personalidade.

  • Personagens ligadas ao plano da ordem: Dona Maria, o Compadre barbeiro e a Comadre parteira — só para citar os mais relevantes — são personagens que respeitam a ordem vigente, isto é, possuem alguma ocupação e, de maneira geral, respeitam a lei. A personagem mais expressiva desse plano é o Major Vidigal, que persegue os vadios, os bêbados, os briguentos e os festeiros, ou seja, faz valer a ordem;
  • Personagens ligadas ao plano da desordem : a cigana, o Chico Juca, todos os que fazem parte do ritual da Fortuna, o Teotônio, piadista perseguido por Major Vidigal, que acaba se safando com a ajuda de Leonardo, e outros que de alguma forma estão à margem da ordem.

Classificadas de acordo com esse critério, seria possível dispô-las em um diagrama:

 

Plano da ordem

Major Vidigal, Dona Maria, Barbeiro, Parteira, Luisinha, as duas viúvas, Padre da Sé e outros.

Familiares de Leonardo, elos entre a ordem e a desordem

Leonardo Pataca, Maria da Hortaliça e Leonardo filho.

Plano da desordem

A cigana, o Chico Juca, todos os que fazem parte do ritual da Fortuna, o Teotônio e outros. 

 

Porém, essa mesma divisão é imperfeita, porque até mesmo personagens que pareçam indiscutivelmente pertencer ao plano da ordem, vez ou outra assumem um comportamento contrário – o Padre da Sé, que embora fosse religioso e, sendo assim, indivíduo do plano da ordem, cultivava um caso com a cigana, que por sua vez era personagem do plano da desordem e assim corrompia o padre. No fim, o que se percebe é que mesmo um personagem pertencendo a um plano, acaba transitando para o outro em algum momento da história.
Basta investigar cuidadosamente as descrições das personagens e suas ações ao longo do romance:

  • o Barbeiro, ainda que seja ligado ao plano da ordem por ter um ofício e por ter acolhido o pequeno herói abandonado pelos pais, conquistou pequeno cabedal tomando posse de uma fortuna que não era sua, ainda jovem;
  • o Padre da Sé, embora fosse um representante da Igreja, tinha um caso amoroso com a cigana;
  • o Major Vidigal, mesmo perseguindo todos os vadios do plano da desordem, concedeu facilmente a liberdade a Leonardo em troca dos afetos de Maria Regalada.

 

O protagonista também não foge à regra: ora no plano da ordem — quando trabalha na ucharia-real ou quando se torna granadeiro de Vidigal —, ora no plano da desordem — quando perde os dois empregos por irresponsabilidade e diversão —, Leonardo representa a verdadeira dinâmica das Memórias: uma representação curiosa do Brasil do início do século XIX, do “tempo do rei”.