Análise da Obra

A obra foi encenada pela primeira vez em 1517.
O “Auto da Barca do Inferno” tende à critica social. Alguns autores a classificam com uma complexa alegoria dramática ou como um auto de moralidade, mesmo que muitas vezes se aproxime da farsa. Esta obra proporciona uma amostragem do que era a sociedade lisboeta, nas décadas iniciais do século XVI. A obra traz tipos alegóricos que personificam exclusiva ou predominantemente ideias abstratas dispostas entre o BEM e o MAL.

 

Personagens:


Anjo: É aquele que escolhe quem vai para o Paraíso. Suas intervenções são rápidas, pode ser considerado um ser passivo que assiste os Diabo tentando de tudo para levar os personagens ao Inferno.

Diabo: Gil Vicente centra nele toda sua verve crítica, ele é quem postula, engana, regateia, faz de tudo para levar todos os personagens à barca do Inferno. Ele consegue enganar o Fidalgo, o Onzeneiro, o Judeu, o Frade, a Alcoviteira, o Corregedor e o Procurador.

Fidalgo D. Anrique: É o primeiro a chegar a barca e chega acompanhado de seu Pajem que carrega uma cadeira de espaldar para que ele se sente. Logo que o viu, o Diabo, já abriu as portas de sua barca. O homem, ridiculariza o Diabo por conta de suas vestimentas, e o pergunta para onde a barca estava indo, ao receber a resposta logo disse que a barca não era digna dele, mas o Diabo, cada vez mas sarcástico, lhe diz que sua vida de ostentação, de luxuria e tirania tronou-o digno da barca do Inferno.
D. Anrique vai em busca do Anjo alegando que pagava suas indulgências e encomendava orações, porém, o Anjo fecha as portas da barca da Glória e o manda ir embora.
O Fidalgo, então, entra na barca do Diabo, e seu Pajem é mandando embora pois ainda não havia chegado sua hora.
Crítica: Gil Vicente centra as críticas no orgulho, na luxuria e na tirania.

Onzeneiro (Agiota): Ele se aproxima da barca do Inferno e pergunta ao Diabo onde está indo. O Diabo lhe pergunta por que ele havia demorado tanto a chegar, o Agiota afirma que foi devido ao dinheiro que pretendia receber e afirma que havia morrido por conta do mesmo e que, por isso, não tinha dinheiro para pagar o barqueiro.
Após ser ridicularizado pelo Diabo por conta de sua ganância e sovinice, o Agiota vai procurar a barca do Céu. Sua entrada não é permitida, pois ele é acusa de ser pão-duro, ganancioso e de ter roubado muita gente.
Ele volta a barca do Inferno e tenta convencer o Diabo de deixa-lo voltar a terra para pegar seu dinheiro, diante da resposta negativa o Agiota acaba entrando na barca do Diabo.
Crítica: Gil Vicente centra as críticas na burguesia e no excessivo materialismo.

Parvo Joane: O Parvo é um homem simples, do povo. Ele se dirige a Barca do Diabo e o pergunta se aquela era a barca dos tolos. O Diabo tenta enganá-lo a fim de fazê-lo entrar na barca, porém, a ingenuidade do Parvo, que acaba passando a perna do Diabo. O Diabo insiste em saber a causa da morte do Parvo e esse diz que foi de “caganeira”.
Ele, então, se dirige a Barca da Glória e pergunta ao Anjo de pode entrar, este o pergunta quem ele é, e o Parvo responde que não é ninguém. Devido a humildade de Joane, o Anjo abre as portas da barca e permite que ele entre.
Crítica: No caso do Parvo é exaltada a pureza e a ingenuidade. Se Joane pecou é porque não tinha consciência de seus atos.

Sapateiro Joanantão: Ele chega usando o avental, carregando as ferramentas características da profissão e as fôrmas. Aparentemente, este é um homem honesto. Ele diz ao Diabo que sempre trabalhou e confessou, com a finalidade de convencer o Diabo que é realmente honesto, porém o diabo começa a citar todas as suas falcatruas, como cobrar de seu clientes por serviços não efetuados, cobrar preços muito acima do normal e roubar aqueles que confiavam nele.
Então ele vai tentar a sorte com o Anjo, começa a falar todas as suas benfeitorias, porém o Anjo não lhe dá atenção, assim com o Diabo o Anjo começa a citar todos os pecados que ele havia cometido. O homem, então, volta a Barca do Inferno e exige que esta saia rápido.
Crítica: Na visão de Gil Vicente, o trabalhador consegue um lugar no paraíso desde que seja honesto. O Sapateiro representa os Mestres de Ofício que, por sua habilidade, deveria ser um homem honesto, sério e cumpridor de seus deveres.

Frade Frei Babriel e sua dama Florença: O Frei chega cantarolando e dançando com Florença. Em uma mão tinha um escudo e uma espada e na outra um capacete abaixo de um capuz. Ele logo se dirige ao Diabo dizendo que é um homem da corte e o pegunta pra onde a Barca vai. Indignado o Diabo o pergunta onde havia aprendido a dançar o Tordião (dança popular que não poderia ser dançada por um homem da corte), e pergunta-lhe também se aquela moça era sua amante. O Frade responde que sim, e ainda diz que todos os outros no mosteiro eram tão pecadores quanto ele. Quando o Diabo diz que o destino da Barca é o Inferno o Frade fica indignado, pois acredita que por ser Frade deve ir ao Céu.
Ele puxa a moça e dançando vão até a Barca da Glória. Lé o Parvo o pergunta se a espada era roubada. Arrasado, o Frade conclui que, já que viveu uma vida de dissipação e vícios, deveria ir ao Inferno. A moça vai com ele sem ao menos reagir.
Crítica: Com o Frade, Gil Vicente faz a crítica ao baixo clero, com tudo que ele tem de mais corrupto e descompromissado com os valores da fé.

Alcoviteira Brísida Vaz: Ela se aproxima da Barca do inferno e pergunta ao Companheiro de Diabo se deveria entrar ali, o Companheiro diz que sim, mas esta afirma que por sempre ajudar as pessoas deveria ir para o Paraíso.
Ela vai a procura do Anjo para poder implorar para entrar na Barca da Glória. Ao encontrá-lo diz que tinha os méritos de um apóstolo para entrar no Céu. Porém o anjo impaciente lembra-lhe que ela enganava, roubava e deturpava a moral, portanto seu único lugar era o Inferno. Arrasada ela entra na Barda do Diabo.
Crítica: O autor traça um amplo painel da sociedade portuguesa da época, as pessoas com que se relaciona, pela sua profissão, têm transito livre entre as camadas da sociedade. Também aproveita para criticar a feitiçaria e a qualidade moral daqueles que trabalham para a alcoviteira.

Judeu Semifará e o bode preto: O Judeu se aproxima da Barca do Diabo e pergunta onde ele estava indo, o Diabo, então, pergunta se o bode iria junto, após receber uma resposta positiva, diz que não aceitava caprinos no Inferno. Semifará tenta subornar o diabo, para que levasse o bode com ele, porém este se recusa a levá-lo. O Parvo começa então a ridicularizar o Judeu que se irrita e responde. Irritado por conta da briga entre o Parvo e o Judeu o Diabo propõe que o Judeu vá em um bote amarrado à Barca.
Obs.: Por ser Judeu, Semifará não tinha nem o direito de ir na Barca com os outros.
Crítica: Este é criticado por não ser cristão e por ser negociante, portanto, se apegava muito aos bens materiais.

Corregedor e Procurador: O Corregedor apreciava o suborno. Não julgava de acordo com as leis, e sim de acordo com o suborno, favorecia aquele lhe proporcionava mais dinheiro. O Diabo conversa com este em Latim, que era a língua da Igreja, da Justiça e da Cultura. O Diabo manda seu auxiliar preparar a barca para viagem, porém o Corregedor não acha que aquela é a barca que ele deve entrar. O Diabo, então, começa a citar todas as falcatruas da esposa do Corregedor que aceitava suborno até de Judeu, mas este diz que não tinha nada a ver com isso, diz que os lucros não eram dele.
Nesse meio-tempo chega o Procurador que se espanta ao ver o juiz Corregedor ali. O Diabo ordena que os dois entrem na barca, pois o Procurador é tão corrupto quanto o juiz. Porém os dois se recusam a entrar na Barca do Diabo e vão em procura do Anjo.
Logo que chegam ao batel do Céu encontram o Anjo e o Parvo, que começa a ridicularizá-los. Indignados, eles entram na Barca do Inferno onde encontram a Brísida Vaz que se sente aliviada, pois foi várias vezes castigada pela justiça.
Crítica: Gil Vicente critica a falsa justiça dos homens. Critica aqueles que estão sempre a serviço dos poderosos que podem pagá-los. A indignação do autor fica evidente quando ele deixa claro que o juiz é obeso pois gosta de se empanturrar com os subornos que recebe.

Enforcado: Ele aproxima-se do Diabo e diz que já foi julgado pela lei, então não deveria ir para a Barca do Inferno. O Diabo contraria dizendo que o pecado cometido foi tão grande que deveria ir ao Inferno. Ele era suspeito de cometer vários crimes em nome de seu chefe Garcia Moniz, do Corregedor e do Procurador. O Enforcado não o contraria, apenas empurra a Barca para o rio, ou mar, sobe nesta e começa a remar em direção ao inferno.
Crítica: Gil Vicente condena, na sequência, o juiz, o procurador e o enforcado, com isso ele ataca os meio jurídicos corruptos e a corrupção que emana deles.

Quatro cavaleiros cruzados: Os quatro traziam a Cruz de Cristo para demonstrar sua fé. Estes morreram nas Cruzadas, lutando contra os muçulmanos. Passam cantarolando pela barca do Inferno. O Diabo os pergunta porque passaram sem, ao menos, perguntarem onde o Diabo estava indo, um deles respondeu que quem morre lutando por Deus jamais entra em tal local.
Prosseguiram e quando chegaram na Barca do Anjo este os recebeu de braços abertos, dizendo que já os esperava havia muito tempo, e que como morreram por Cristo estavam livres de qualquer pecado.
Crítica: Com esses quatro “personagens” Gil Vicente revela seu lado hipócrita, pois os cavaleiros são nobres e estão a serviço de Deus, então ao absolve-los, Gil Vicente, redimi-se com a nobreza e com a Igreja.
 

 Estrutura da Obra

Cenário: Um braço de mar ou rio com duas barcas estacionadas, a da Glória e a do Inferno. Pode-se supor que este lugar onde as almas vão é o Purgatório.
As cenas: Não há uma sequencia narrativa, cada personagem entra em cena cumpre seu papel e sai, apenas o Anjo, o Diabo e o Companheiro do Diabo permanecem em cena. O Companheiro participa das cenas sem interferir nelas.
Estrutura das falas: Gil Vicente não aderiu aos modismos trazidos por Sá de Miranda, então suas peças são escritas em REDONDILHAS (maiores e menores).
As estrofes, normalmente, são compostas por 8 versos (oitavas) em que predomina o esquema: ABBAACCA. A constância tanto na métrica quanto no esquema rítmico sofre alguns reveses.

 Contexto Histórico - Humanismo

Chamou-se humanismo o movimento cultural iniciado na Itália e que se espalhou pela Europa, no período que corresponde à transição da Idade Média à Idade Moderna.
Em Portugal, a Revolução de Avis (1383-1385), com a aclamação de D .. João, o Mestre de Avis, aliado aos burgueses, proporcionou a expansão ultramarina. A partir da Tomada de Ceuta em 1415, os navegantes portugueses chegaram à África, à Ásia e à América. Essa nova realidade mercantil provocou uma crise no sistema feudal e no pensamento religioso, que levou o teocentrismo a ceder seu lugar ao antropocentrismo, isto é, o ser humano no centro da vida humana. Essa nova visão refletiu-se nas grandes obras do período, que tinham como centro de interesse o próprio ser humano.
Entre os fatores que contribuíram para tal mudança podemos apontar:
a) a ampliação do mundo conhecido através das grandes navegações;
b) a ascensão da burguesia voltada para o comércio e para a vida material;
c) a invenção dos tipos móveis na imprensa por Gutenberg, que facilitou a divulgação das obras clássicas, até então copiadas a mão, pelos monges nos mosteiros.
As manifestações literárias mais significativas do período humanista em Portugal foram:

na historiografia - as obras de Fernão Lopes, Gomes Eanes de Azurara e Rui de Pina;

na poesia - as obras de João Ruiz de Castelo Branco.

no teatro - as obras de Gil Vicente.

 Conteúdo

Livro em PDF:

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Banco de questões de vestibulares:

Questões Auto da Barca do Inferno.docx (17,4 kB)